O Julgamento de Jesus Pilatos lava as mãos

“Eu lavo as minhas mãos”

O Julgamento de Jesus Pilatos lava as mãos
“Eu lavo as minhs mãos do sangue desse inocente”- Christ before Pilate, by Tintoretto, 1566.

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Narrado por Mateus, o gesto de lavar as mãos notabilizou o juiz romano Pôncio Pilatos como um ato de omissão, pois teria ele prevaricado de seu dever, absolver quem ele entendia ser inocente. Todavia, o gesto de lavar as mãos não era nem romano, nem foi inventado por Pilatos, tampouco significa omissão, pelo contrário, o gesto é de absolvição!

Lavar as mãos era um ato formal de um Juiz do Sinédrio quando, ao fim de um julgamento em que sua opinião de inocentar um acusado era vencida pela opinião da maioria, diante de Deus e de seus colegas, o juiz que inocentava lavava as mãos para “declarar-se limpo do sangue de um inocente”, ao que os juízes que condenavam deveriam replicar, em voz alta, “que o seu sangue caia sobre nós e a nossa família!”.

Realmente, é um mistério como Pilatos sabia dessa prática usada pelos Juízes judes em reunião de julgamento no Sinédrio. Era impossível que ele tivesse conhecimento dessa prática, visto que não tinha contato, quer com os judeus, quer com suas tradições. Pilatos fora um soldado romano e, por puro acaso, terminou assumindo a “prefeitura” da Palestina.

Então, o ato de lavar as mãos se constitui em um mistério tão grave que existem pesquisadores que consideram fictícia essa ocorrência, como a própria existência de um Pilatos julgando o Cristo, tamanha “ambiguidade” em torno da figura do Juiz romano.

Contudo, há provas de que Pilatos existiu e é voz corrente de historiadores e escritos da época que ele, de fato, julgou um homem chamado Jesus, a pedido das autoridades de Jerusalém.

Uma interpretação pessoal do ato que faço, leva-me a crer que Pilatos já tinha firmado o entendimento de que não havia ato ilícito praticado por Jesus de interesse romano, segundo a leitura dos Evangelistas.

O próprio Jesus não confessou. Quando Pilatos perguntou se Cristo se dizia “rei”, os Evangelistas narram que Jesus disse: Tu o dizes, o que significaria que Jesus não afirmara uma realeza da Palestina, diante de César, ali representada por Pilatos, o que poderia ser interpretado como um ato de rebeldia. Pelo contário, descrevem os Evangelistas que o Cristo teria, de certa forma, ironizado a sua própria condição, no sentido de que, se fosse “rei”, naquela concepção imaginada por Pilatos, Ele não estaria ali preso, humilhado, maltratado, sem que seus “Ministros” interviessem a seu favor!

Por isso, ao que parece, Pilatos tinha mesmo conhecimento de como as autoridades do Sinédrio julgavam e, considerando o “conflito” de competência, já que Pilatos dizia para que as próprias autoridades judias “julgassem o Cristo”, ao mesmo tempo em que essas insistiam que não, que o caso dele era de infração às leis romanas, então, creio que Pilatos se posiciou como um “membro” do Tribunal Judeu que, por sua vontade, tinha o acusado por “inocente”, razão pela qual “lavava as suas mãos para limpá-las do sangue de um inocente”. Dessa maneira, Pilatos se posicionou não como um Juiz romano que julgava individualmente, mas como Juiz de um painel, do qual as autoridades judias faziam parte e formaram a maioria para a condenação do Cristo.

O ato de lavar as mãos, como dito, é, inegavelmente, da tradição do Judaísmo, não de romanos. Ato de “limpeza de impureza”.

Mas, é relevante deixar a informação de que, senão todos, a grande maioria dos doutrinadores cristãos consideram inverídica a ocorrência de “lavar as mãos” descrita por Mateus…

E, ainda, não são poucos os historiadores sérios que consideram Pôncio Pilatos um simples e rápido vulto da História.

Quem saberá ao certo?

Nenhum de nós estava lá, na verdade…

O homem contemporâneo e sua ciência nasceram tarde demais para saber muito do que aconteceu antes de nós.

Pilatos lava suas mãos no julgamento de Jesus Cristo
James Tissot (French, 1836-1902). Pilate Washes His Hands (Pilate se lave les mains), 1886-1894. Opaque watercolor over graphite on gray wove paper, Image: 6 1/4 x 5 1/8 in. (15.9 x 13 cm). Brooklyn Museum, Purchased by public subscription, 00.159.271 (Photo: Brooklyn Museum
Livros para quem pensa com o lado esquerdo do cérebro
Jesus e o Cego na Estrada de Jericó

O cego na estrada de Jericó

Jesus e o Cego na Estrada de Jericó
* crédito da imagem

Qual a importância de um evento passado, tão antigo, ser lendário ou verdadeiro? O que mudará, em nossas vidas, saber até que ponto foi real, ou criativo, o julgamento de Cristo por Pilatos, em todos os estranhos detalhes narrados pelos Evangelistas?

Que objeto de sua existência deixou o Cristo? Que documento foi produzido por Ele?

Nada obstante tanto se tenha escrito sobre o Cristo, é certo que Ele mesmo nada deixou escrito, jamais escreveu qualquer coisa, senão, no pó do chão, os grandes pecados daqueles que julgaram a prostituição de Maria Madalena. Ainda assim, o vento se encarregou de logo apagar o que o Mestre, com o dedo, escreveu no chão de terra seca.

E por mais bem retratadas que sejam as passagens do Cristo narradas pelos Evangelistas, elas ainda são dúbias… Aparentemente, o Cristo usava da ambiguidade como uma forma de liberdade de intepretação.

Realmente, se Deus não fosse uma hipótese, a fé perderia o sentido, já que o valor dela é, justamente, acreditar.

De igual modo, o Cristo usou de parábolas e muitas passagens sobre Ele e suas palavras seguem o exemplo da própria relação do homem com o seu pai: Uma hipótese que comporta infinitas intepretações, justamente, por sua dubiedade e ambiguidade.

Aqui, lembramos a passagem do “Cego de Jericó”.

Diz o Evangelista Marcos que Bartimeu, filho de Timeu, estava sentado à entrada de Jericó quando, da passagem por ali do Cristo, começou a gritar por Ele. Havendo o Cristo se aproximado e indagado o que queria, pediu a cura da cegueira. Cristo o atendeu.

Ora, diz João que, havendo os discípulos questionado ao “Rabbi” quem pecou, se o cego ou se os seus pais, dado a ter ele se encontrado naquela situação desde o nascimento, Cristo respondeu que ninguém pecou, e que a causa de sua cegueira era para que nele, no cego, se manifestasse a vontade de Deus.

Essa passagem, a meu ver, lança luz definitiva na perspectiva da possibilidade da doutrina filosófica do Fatalismo como uma alternativa possível a explicar certos eventos que surgem, aparentemente sem explicação ou razão, do se nascer (quando nos tornamos parte do mundo) à morte (quando deixamos o mundo), seja como autoanálise, seja como reflexão sobre as vidas de pessoas que conhecemos.

Consequentemente, não existem as “coincidências”.

Fora do plano ético, onde, realmente, há certa liberdade de escolha, cuja medida jamais saberemos também, no plano das causalidades ficamos mesmo refém do destino.

Sendo assim, não poderíamos jamais entender que Pôncio Pilatos, na condição de Juiz que foi o responsável direto pelo cumprimento da “Profecia de morte do Cristo”, estivesse ali, na Torre de Antônia, a julgar as acusações contra o Cristo, apenas como um mero figurante.

Definitivamente, Pilatos representou a lei, o direito, a justiça, todos os valores humanos, em confronto com todos os valores do Cristo. Diante da força dos que acusavam o Cristo, Pilatos não se omitiu.

Ele, realmente, condenou o Cristo e todos os seus valores? Não.

Ele “lavou as mãos” – um dos mais misteriosos e controversos ato da História evangélica do Cristo – tornando-se um “juiz do Sinédrio” com voto vencido no julgamento do Cristo…

Mas, aqui temos uma intepretação apenas. Todavia, não parece crível se imaginar que tenha sido o julgamento do Cristo um ato de absoluta indiferença para o juiz romano, e que tantos detalhes narrados nos Evangelhos sejam “acréscimos inverídicos” que, simplesmente, “romantizaram” a morte de Jesus e, para dois milênios mais tarde, “justificaram” um antisemitismo.

A propósito, dentro daquela concepção “fatalista” a que aludida acima, nem as então autoridades de Jerusalém, nem Judas Iscariotes, nem Pedro, nem Pilatos, podem ser levados à conta de “responsável” pela morte do Cristo que, desde muito tempo, era por Ele mesmo profetizada!

A tomar-se por verdadeiro o Dogmatismo Cristão, a morte do Cristo era um fato consumado antes mesmo de se consumar.

* A cura do cego Bartimeu por Jesus na Estrada de Jericó

Nicolas Poussin 1593/94 – 1665
The Healing of the Blind of Jericho
Musée du Louvre, Paris

Livro para quem pensa com o lado esquerdo do cérebro
Coroa de espinhos

O Suplício

Jesus Cristo Crucificado
Consummatum est – Jean-Léon Gérôme

Capítulo – XIII

Era quase meio-dia. O sol ardia na cidade de Davi, a seca e sagrada Jerusalém; nem uma brisa passava pelas ruas para suavizar a temperatura elevada, nem uma nuvem surgia no céu para abrandar a potência abrasadora dos raios solares. Nas vielas estreitas e antigas da cidade, testemunhas de tantas invasões e disputas por seu domínio, sob os apupos populares, o condenado Jesus cambaleava, arrastando seu corpo enfraquecido e machucado; os pés, descalços e feridos, tropeçavam nas pedras desiguais das ruas; nos ombros franzinos, levava o madeiro que se destinava a Barrabás.

Chamavam aquele pedaço de madeira de patibulum; não iria tardar para que ali Seus braços fossem abertos e Seus pulsos pregados com cravos compridos e agudos, que Lhe varariam a carne, lacerando tendões e nervos. Ele irá viver coisas que são um pesadelo.

O Calvário era uma promessa de muito sofrimento ainda. Mas a sorte Lhe sorrirá, afinal, Ele morrerá logo, livrando-se dos latejos cegantes que a coroa de espinhos, na cabeça fincada a pauladas por Letício, estavam Lhe causando.

Maria a tudo assistia. Corajosamente, seguia o filho naquela sina. Quem poderá descrever o que pode sentir uma mãe ao ver assim seu filho? José de Arimatéia, Nicodemos e Verônica, entre tantos outros que o amavam acompanhavam a mãe de Jesus.

Manso e compreensivo como ninguém poderia ser, aquele homem aceitava o sofrimento físico e as humilhações. Jamais o mundo viu um homem tão paciente com a dor, tão pacífico com as adversidades! Mas  seu corpo humano já dava sinais de mortal exaustão. Antes, já fora fustigado pela sede, pela fome.

Para aquele tempo, o homem Jesus foi tratado como a mais desvalorizada das coisas.

Uma inquietação perturbava o povo: Ele não poderia morrer antes da cruz… Ele deveria subir a encosta do Gólgota.

E o Gólgota ou Calvário ficava fora da cidade. Era um monte arredondado cujo nome, sugestivamente, em aramaico significa caveira ou crânio, por ser o local palco de inúmeras execuções e onde havia muitos crânios na terra, restos mortais de outros réus.

Além de Jesus, iam também levando umas coças pelo caminho os dois ladrões; executar-se-iam os três juntos: O sedicioso e os dois larápios.

Repentinamente, Jesus se desequilibrou e caiu; por desventura, o lenho que sustinha desabou sobre sua cabeça, nela abrindo um profundo corte, dando-lhe um banho de sangue no rosto já massacrado.

Verônica, não podendo se conter, correu em socorro do mestre. Tinha os olhos inchados de prantos. Jesus respirava a longos haustos. Dos pés à cabeça, Ele era todo chagas. Seu belo rosto estava desfigurado…

A guarda requisitou um homem para auxiliar o condenado a chegar vivo até o morro das torturas. Dizem que foi Simão de Cirene. Assim mesmo, para Jesus, carregar o próprio corpo já não era fácil. Era demais a fadiga. Mas todos reconheceram que Ele se esforçou para não os decepcionar; afinal, era o convidado de honra do Gólgota.

Coroa de espinhos
O Julgamento de Pôncio Pilatos – Edmundo Lellis Filho

Ladeado por dois soldados encarregados, assim identificados pelos varapaus e machados que portavam, símbolos dos poderes capitais do magistrado que representavam, um arauto carregava a sentença de morte de Jesus, na qual se liam, resumidamente, os motivos de sua crucificação: “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”, um achincalhe feito por Pilatos sob a forma de trocadilhos, o modo sarcástico que encontrou para se vingar das autoridades locais, por o obrigarem a mandar crucificar quem ele sabia ser inocente. Samaritanos faziam gozação daquilo. Tentaram alguns judeus destruir o titulus. Os truculentos soldados impediram. Chegaram a pedir para que Pilatos retificasse a sentença para que constasse a frase “Jesus de Nazaré Que Se Dizia Rei dos Judeus”.

Quod scripsi, scripsi!”, “O que escrevi, escrevi, não volto atrás”, foi sua resposta. Pilatos não voltou atrás!

Finalmente, alcançaram o alto do Gólgota. O condenado Jesus enfrentou um exército de tormentos, em uma guerra de um mundo contra um homem.

O que se sucedeu foi repugnante e vergonhoso.

Jesus foi despido, deixado de tanga; agora, deitaram-no seminu, na terra, e os braços foram esticados no madeiro patibulum. Iniciou-se o clímax da sua saga de sofrimento. Os soldados romanos impassíveis começaram a lhe pregar o pulso direito; em seguida, o esquerdo. Por ouvir o ribombo da marreta, Jesus despencou no abissal fosso de dores. Aos borbotões, o sangue da vítima espirrava para todos os lados…

Cada martelada acertada na cabeça do cravo produzia um som estridente que ecoava até a Torre Antônia; por vezes, o tosco soldado de Pilatos errava a pontaria e, então, golpeando a mão de Jesus, ouvia-se um barulho surdo e contundente da marreta prensando a carne contra a madeira.

Buscaram o poste no qual deitaram o corpo dele. Fizeram o jeitoso encaixe e pregaram o patibulum.

Faltavam os pés. Habilidosamente, foram postos um sobre o outro. Os soldados tomaram o cravo mais comprido e, com marteladas mais fortes ainda, trespassaram o prego no peito dos pés Dele, fixando-os firmemente no poste. Jesus gemeu um pouco. Não aceitou nenhum lenimento para sua dor, não quis vinho misturado com mirra. Seu próprio Pai ficou surpreso com que vigor tomou longos goles de seu cálice de dor.

Com o auxílio de cordas e forquilhas, os algozes ergueram o sedicioso pregado na cruz, colocando-a em pé, próximo ao buraco cavado, onde deveria ser fincada. Um soldado, então, com um tranco, empurrou-a para frente e, deslizando, o tronco caiu no fosso. O solavanco brusco da queda da cruz fez com que os cravos – nos quais Jesus estava dependurado – rasgassem dolorosamente as carnes de seus pulsos e pés, sobressaindo-lhe os nervos. O sangue lavava a madeira, escorrendo até a terra insólita do Calvário, formando um barro avermelhado.

Serviço cumprido. Tanto esforço dos soldados merecia uma compensação: sortearam entre si a túnica do crucificado.

Como um dedo, a cruz apontava para o céu azul e totalmente desanuviado; sua sombra, arrastando-se pelo chão, coincidentemente indicava a direção do Templo de Jerusalém, lugar onde Ele estivera, tantas e tantas vezes, orando, ensinando e, por vezes, até mesmo chorando a iminente catástrofe que estava por recair sobre a cidade santa…

Longelino, o chefe de execução, que achava aquilo tudo muito divertido, gritou.

“É a vez dos ladrões!”

Por serem homens, estavam tão desesperados quanto era possível estar… Quando os soldados se aproximaram deles com as marretas, começaram a gritar com toda força dos pulmões e, ao contrário de Jesus, aceitaram o vinho com mirra, o qual beberam abundantemente.

Escribas, anciãos e os príncipes dos sacerdotes se apiedaram deles; entre si, boquejavam Pilatos, que os condenou a tão bárbara penalidade.

Para que os executores pudessem cumprir a crucificação, todos os soldados tiveram de se agarrar aos ladrões. Não havia mais cravos para pregá-los na cruz; foram apenas amarrados na trave horizontal, deixando os poucos pregos restantes para a fixação do patibulum.

Quem esteve presente aquele dia contou que o firmamento de Jerusalém começou a ficar incomodado com o Gólgota; cores sombrias vindas do horizonte começaram a tingir de escuro o azul celeste, cuja abóbada pouco a pouco foi se recobrindo com um véu melancólico e misterioso. O flagelo do Cristo enfurecia a natureza, que exigia uma morte mais rápida. Todo aquele sofrimento tinha que chegar logo ao fim.

Os seus inimigos já tinham cansado de insultá-lo a cada contorção de dor.

Entregue de corpo e alma, Jesus tinha os olhos cerrados; absorto e em silêncio absoluto, mergulhado na solidão do fundo abismo de trevas e aflições; por vezes, vibravam uns nervos do rosto, moviam os lábios sedentos e febris, umas ofegadas.

Antes, consolara a mãe, resgatara Dimas, proferira sete lições e propusera a reconciliação ao mundo. Emudecera depois de clamar por Deus… Rendera-se à morte como um alívio da vida. Como ele mesmo disse, tudo estava consumado. Um violento trovão comemorou-lhe a morte e o findar da missão bem sucedida.

O céu de Jerusalém escureceu aos poucos, engolfado em um tenebroso negrume. Três horas da tarde de um dia que esteve ensolarado pareceram três horas da mais sombria das madrugadas. Poucos eram os que ainda estavam no Gólgota: Maria e os que a assistiam, dois ou três soldados… Os demais foram embora, afugentados pelas sombras que desceram do céu e se deitaram sobre a cidade.

Sob aquelas trevas, coisas misteriosas aconteceram: um golpe de terremoto veio sacudir a terra, trincando paredes e fendendo rochas… Houve grande pânico ali.

Caifás e seus partidários, que estavam reunidos em uma das câmaras do Templo, jogaram-se ao chão, encobriram a cabeça com as mãos e suplicaram em voz alta a Deus para que não permitisse que morressem soterrados sob as pesadas colunas do monumento… Depois, por um momento, imaginaram que pudesse ser a chegada do Messias em Jerusalém… Porém, o contrário acontecia. Era o messias que partia… Era Jesus que morria, e somente os poucos que permaneceram ao pé da cruz sabiam que todo aquele fenômeno se desencadeara, justamente, após o seu último expiro de vida.

Lá no Morro da Caveira, o oficial romano encarregado de cumprir a crucificação, diante daquelas manifestações inexplicáveis da natureza, foi tomado por um desespero incontrolável; jogando-se ao chão, passou a gritar histericamente.

“Ele era mesmo o filho de Deus, e eu o crucifiquei!”

Longelino foi, em um instante, tomado de permanente e fulminante demência, mas não pela vontade do mestre, que foi sempre complacente, mas pela dureza do seu próprio coração… Foi ele o soldado que, diante de Caifás, desferiu uma injusta e humilhante bofetada no rosto do mestre; foi ele também um dos que, juntamente com Letício, por pura perversidade, escarneceu de Jesus, vestindo-o com o sarcástico manto real e pregando-lhe, depois, uma coroa de espinhos na cabeça. Agora, quando ouvia a voz do Gólgota sob a forma de um trovão, suas crueldades excessivas voltaram-se contra sua lucidez.

De um pulo, o romano ensandecido saltou do chão onde rolava e, rasgando as próprias vestes, desceu as encostas do morro, correndo desvairadamente e gritando palavras incompreensíveis. Apesar das ordens que Pilatos expediu mais tarde para a sua captura, nunca mais ninguém o viu e em Jerusalém sua história se tornou uma lenda… Dizem que esse soldado, como retribuição aos seus crimes, recebeu o castigo de viver continuamente até que Jesus, como havia prometido, retornasse ao mundo pela segunda vez.

***

Esse, de cuja vida e morte se falou brevemente, amealhou para a posteridade uma sabedoria cujo legado foi constituído de mistérios insondáveis.

 Do seu tempo aos tempos de hoje, só um sopro de anos se passou.

E ao longo desse expiro, as mais de vinte gerações de homens que se sucederam após seus dias têm refletido sobre sua doutrina e interpretado seu comportamento de maneiras diversas, atribuindo-lhe sentidos por vezes tão antagônicos entre si que nem parecem ter sido inspirados pela mesma história. Não raro, em nome da sua paz, fizeram a guerra.

Porém, de uma forma ou de outra, essa história tem um significado particular na existência individual de cada um que a conheceu e acreditou; mesmo aqueles que duvidaram Dele ou Dele jamais ouviram falar, e até os que ainda estão por nascer não escapam da influência da sua passagem pelo mundo, cuja própria existência, nos dias de hoje, seria uma incógnita se da sua memória pudessem arrancar a página de sua vida.

Conta a história que Jesus teve uma morte rápida na cruz, o que surpreendeu as autoridades romanas e locais. Não imaginavam que fosse tal a sua debilidade física. A respeito da morte rápida, há quem julgue que Deus se apiedou Dele, abreviando seus sofrimentos. Quando Pilatos soube que o homem Jesus morrera, passou por sua cabeça o que aconteceria agora. “Iria Jesus ressuscitar da própria morte?”, perguntava-se o governador. Por fim, concluiu que se Jesus não ressuscitasse, ficaria provado que Ele era um impostor e o seu ministério um embuste, o que faria Dele uma vítima de si mesmo, por causa da máxima presunção em se declarar o filho de um Deus único…

“Nunca ouvi dizer de alguém que pudesse padecer tão rápido em uma  cruz! Morreu como um homem qualquer… Vejamos se vai ressuscitar como um deus, no terceiro dia, conforme a profecia. Contudo, se voltar a viver, a imortalidade o tornará o maior dos reis, e todos os impérios deverão se curvar a Jesus, porque nem César, nem os deuses romanos, gregos ou egípcios jamais deram uma prova tão eloqüente do próprio poder. O que irá acontecer? Seus ministros invadirão o mundo?” – conjecturou Pilatos.

Quanto aos ladrões, tiveram que ser mortos à espada naquela mesma tarde, porque contrariava os costumes judeus que, na festa de Páscoa, houvesse pessoas crucificadas na cidade. Antes, porém, para compensar o abreviamento do sofrimento na cruz, os soldados romanos lhes quebraram as pernas. O sedicioso Jesus não teve ossos quebrados, cumprindo-se a profecia dos que o antecederam. Contudo, para ter certeza de que estava mesmo morto ao ser desprendido da cruz, os soldados romanos perfuraram seu peito com uma lança…

Por solicitação de José de Arimatéia, Pilatos deferiu que o corpo de Jesus tivesse um enterro digno e seu cadáver fosse depositado em um cemitério comum, no Horto, livrando-o assim de ser sepultado em terra infame junto aos corpos de fascínoras.

“O Julgamento de Pôncio Pilatos”

Prefácio

Jesus Cristo é julgado por Pilatos
Jesus Christ, title Pontius Pilate washing his hands, from Christ’s Passion set of paintings by Kosheleff, circa early 1900s.

De todas as autoridades que o mundo conheceu, coube a Pôncio Pilatos a mais dura tarefa: o julgamento do Senhor. Magistrado romano com amplos poderes de vida e morte na Judéia, por outorga do imperador Tibério, passou Pilatos das sombras do anonimato à luz da História por ter tido sua vida entrelaçada com o caminho do Cristo.

Mas, quem foi Pôncio Pilatos? O que ele fazia antes e o que fez depois do julgamento do Cristo? Como foi a vida desse julgador que, pressionado pelo poder político, diante da inocência do réu, lavou as mãos? Sobre seu passado e futuro, concordam os historiadores sagrados e profanos: Nada se sabe fora do contexto daquele julgamento que consta nas Escrituras Sagradas e nos apócrifos.

O presente livro apresenta uma versão sobre o destino de Pilatos, que não se tornou o julgador do Cristo por acaso.

O Novo Testamento revela que o Cristo sempre teve suas razões: Observava atentamente os caminhos dos homens e considerava todos os passos deles… Em uma ocasião, quando perguntado sobre a causa de haver um cego mendicante na estrada estreita e infestada de bandidos, que ligava Jerusalém ao rico distrito de Jericó, respondeu o Senhor: “É cego para que nele se manifestem as obras de Deus”, e o curou da cegueira em seguida.

Não havia casualidades nas passagens do Cristo por todos os seus caminhos no mundo.

Então, existe um motivo, uma razão, uma causa oculta em algum momento da vida do juiz Pilatos que o levou a ser escolhido para protagonizar, naquela fatídica manhã, o mais constrangedor de todos os julgamentos da história humana.

Quem poderá censurar Pilatos por sua fraqueza?

Simão Pedro, para não ser julgado com o Mestre, negou-O três vezes; Pilatos, para não ser o julgador do Mestre, negou-se três vezes a julgá-Lo.

Não teria também o grande magistrado, tal qual o grande apóstolo, chorado amargamente a sua covardia quando, do cimo do Gólgota, viu estendida sobre Jerusalém a sombra da cruz? Que atroz sentimento, qual lâmina afiada, não trespassou, com pungente dor, a consciência daquele julgador quando, ainda no inicio da tarde funesta, viu-se perder a inocência sob o jugo da mais cruel e humilhante pena?

No pretório, à hora do finório julgamento, entrou descalço e maltrapilho o Messias… Cabisbaixo, manietado e já maltratado pelos punhos do Sinédrio, não ficou muito tempo frente à gabbatha. Não Se defendeu e saiu sem olhar nos olhos de Pilatos, que admirou aquele réu… Não esperava, porém, vê-lo assim… Aquele homem, que diziam ser o rei dos judeus e o filho de Deus, era baixo e magro; porém, sua pessoa era bem diferente de qualquer outra que o procurador da Judeia já vira antes.

Sob sua admirável toga de governante romano, vergada à custa do reconhecimento de César aos seus diversos triunfos militares, que tipo de homem se sentiu Pilatos ao ver que o Nazareno – de frente para a turba caluniadora, sem ala de cavalaria e sem coortes de infantaria – era bem mais corajoso do que ele?

Antes de proferir a sentença de morte, a quais meditações teria a resignação do Cristo conduzido o perplexo espírito de seu julgador? De que lancinante decepção não padeceu o vaidoso romano, ao saber que descer as escadarias do poder demandava mais coragem do que subi-las? E a que virilidade pensou Pilatos poder atribuir o silêncio do Mestre quando, levado a ser flagelado duramente pelos soldados, nenhum gemido de dor se ouviu?

Em meio àquela multidão, espremida no limiar do pretório e vociferando impiedosamente contra o Cristo, enquanto todos os olhos só miravam, petrificados, a cena do julgamento, houve, certamente, naquele momento frenético, quem dispensasse um olhar para o céu anil e pensasse: “Pilatos teme mais perder o cargo que o Nazareno a vida”. Ditosa alma que, em tão grave situação, teve tal agudeza de percepção.

Ditado o veredicto de morte; lavadas as mãos: Um momento inolvidável da história de toda a humanidade…

Antes que arrastassem o condenado para fora, Pilatos se inclinou na tentativa de olhá-Lo nos olhos, mas isso não foi possível. Já de costas o rei dos judeus, Pilatos supôs que poderia voltar a vê-Lo, caso a Sua profecia de ressurreição se cumprisse…

Quando veio a noite, Pilatos era um homem absorto, solitário e perturbado; na claridade trêmula do fogo de uma pira, intrigava-o a rica bacia de prata onde, horas atrás, lavara as mãos.

O ato de lavar as mãos pertencia às Escrituras, que Pilatos não conhecia por não ser judeu. Então, como ele sabia que com esse gesto poderia se declarar inocente do sangue de Cristo? E, na madrugada que precedeu o julgamento, que sorte de perturbações povoaram o sono da esposa do procurador? Por que atendeu o governador da Judeia às instâncias de seus inimigos do Sinédrio, cedendo-lhes uma escolta para a guarda do sepulcro do Cristo?

Para além da curiosidade, havia um motivo pessoal.

Abandonada Jerusalém à amargura da lembrança do histórico julgamento do Cristo, já em sua residência oficial, na bela Cesareia, não chegou o mesmo Pilatos de antes. Pouco a pouco, era inevitável que ele se conscientizasse de que sua sentença foi o traçado final de uma antiga profecia do povo de Deus.

O julgamento de Pilatos pode ser visto de muitas maneiras, desde um simples episódio na epopéia do Cristo até um místico evento na vida de um homem cuja ventura foi ter tido a responsabilidade de, como homem, julgar Deus e condená-Lo.

Todas as parábolas do Cristo se multiplicam todos os dias tão repetitivamente que elas já não podem mais ser identificadas como suas lições.

O julgamento de Pôncio Pilatos representa, na verdade, o dilema ético da humanidade.

O confronto do juiz Pilatos com o Cristo, de certa maneira, só poderá ser compreendido como a última cena das lições morais do Cristo em face dos anseios, fraquezas e dúvidas do homem, uma lição que também se reproduz, na calada de nosso foro íntimo, no confronto cotidiano de nossa consciência, que é o juiz de nossos atos, com a verdade.


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O Julgamento de Pôncio Pilatos - Edmundo Lellis Filho - Lhasa Editora

O Desaparecimento de Pôncio Pilatos

Apesar de meus esforços, por que eu não encontrei o “fim” de Pôncio Pilatos? Por que não pude escrever uma história real de como terminaram os seus dias? Ele é uma “porta” que os evangelistas deixaram “aberta” para a posteridade teológica; um começo cujo fim eles legaram à posteridade cristã; uma pergunta cuja resposta não podiam dar, porque ele estava num futuro do qual eles mesmos não seriam mais testemunhas. Todos os anos de intensas pesquisas não puderam me tirar do ponto de partida de tudo, a Torre Antônia, naquele instante de silêncio em que o Cristo não responde a Pilatos o que é a verdade. Tanto tempo, tanta meditação por um silêncio. Desde aquela distante tarde, no pretório da Torre, Pilatos tem continuado sua vida na estória de cada um de nós, conosco permanecendo até o último momento de nossa existência. É em vão procurar seu distino fora de nós mesmos.

Edmundo Lellis Filho Canadá

Edmundo Lellis Filho

Autor/Escritor

Nasceu em Taubaté, em Outubro de 1965. Aos 17 anos, começou a trabalhar como professor autônomo da Língua Inglesa. Foi escriturário do Banco Bradesco (1985). Formou-se em Direito pela Faculdade Católica de Santos (1991). Ingressou em Agosto de 1988 no Tribunal de Justiça de São Paulo como Oficial de Justiça em Santos. Em Outubro de 1991, foi nomeado Juiz Substituto daquele mesmo Tribunal, onde seguiu carreira sendo Juiz titular das Comarcas de Aguaí, Avaré, Cotia, São José dos Campos, Capital de São Paulo, Santos e Santo André. Foi professor universitário de Processo Civil e Direito Civil (Itapetininga FKB, UNIP campi de Sorocaba e São Paulo, cursos livres em São José dos Campos, Sorocaba e Campinas). Ministrou aulas de Direito Aeronáutico em cursos livres on line, 2004-2009. Em 2000, adquiriu a licença de piloto privado de avião/IFR. Em 2004, formou-se em Investigador de Acidente Aéreo pela Força Aérea Brasileira, da qual também é membro honorário (09/2009). Foi fundador  (08/2011) da Associação de Proteção ao Consumidor do Setor Aéreo (APROAR). Tornou-se membro honorário do Aeroclube de São Paulo (2018). Membro da IBA – International Bar Association. Membro da International Law Association – London Branch. Mestrando em Justiça Internacional pela Universidade de Londres/UCLUniversity College of London. Escritor romancista: O Julgamento de Pôncio Pilatos, A Lembrança Eterna do Esquecimento, A Pedra Negra de Belarus, Asas do Destino (uma relação lúdica com o avião) entre outros trabalhos literários.

 

Edmundo Lellis Filho Canadá
Edmundo Lellis Filho – Canadá
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